Soberania energética e bem viver: seminário internacional reúne cerca de 200 participantes

Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil

O II Seminário Internacional Soberania Energética, Integração Elétrica e Gestão Pública para o Bem Viver, realizado de 17 a 19 de agosto, reuniu movimentos populares, organizações e sindicatos da América Latina. Entre as pautas centrais, foram discutidos a revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu, a luta pela reestatização da Eletrobras e as violações aos indígenas Avá-Guarani afetados pela construção da hidrelétrica binacional.

Ao todo, participaram presencialmente quase 60 pessoas no Sindicato dos Trabalhadores da Administração Nacional de Energia Elétrica – SITRANDE, em Assunção, no Paraguai, e de forma virtual mais de 120 acompanharam o webinar ao longo dos três dias.

O seminário foi declarado de interesse nacional, conforme a Declaração nº 426 do Congresso Nacional, de 19 de agosto (confira o documento no final do texto). A proposta de reconhecimento foi apresentada ao congresso paraguaio na sessão de 10 de agosto por um coletivo de oito senadores, entre os quais o ex-presidente Fernando Lugo.

Na análise de conjuntura (a partir da esquerda), Ruben Penayo, Jorge Lara Castro e Mercedes Canese. Fotos: Flaviana Serafim

O segundo encontro teve início com um breve resgate da memória do primeiro seminário internacional, realizado em novembro de 2021, ambos construídos coletivamente por um conjunto de organizações, movimentos populares e sindicatos, articulados em torno de pautas e lutas comuns no Cone Sul. Na sequência, a análise de conjuntura abordou os desafios da soberania hidrelétrica, a integração elétrica e o direito humano à energia no contexto das privatizações, da crise climática, social e bélica e as consequências da pandemia.

Pablo Bertinat, do Observatório de Energia e Sustentabilidade da Universidade Tecnológica Nacional de Rosario (Argentina), tratou dos desafios da transição energética. Ele chamou atenção para os “novos extrativismos’ que impactam o Sul global a partir das propostas do “green new deal”¹ dos países do Norte: um extrativismo atrelado a energias renováveis em vez dos combustíveis fósseis (exploração de lítio, hidrogênio “verde”, entre outros), mas num modelo que se mantém fortemente desigual, que sustenta o imperialismo e afeta os povos e territórios do Sul.

Bertinat avalia como arriscado o discurso sobre o direito ao desenvolvimento, propagado inclusive entre os setores progressistas. “Há uma ideia de que a economia do Norte já queimou tudo e se desenvolveu graças a isso, e que agora cabe a nós queimar tudo para tentarmos nos desenvolver da mesma forma. Nesse sentido, o único caminho é acreditarmos na resistência antissistêmica que nos permite pensar outra visão, entendendo a transição energética popular como propomos. Não é somente mudança de fontes de energia se for não uma mudança de sistema de energia”.

Ele afirma que a transição energética popular é relevante considerando também que o sistema terá menos energia disponível, “então precisamos encontrar maneiras de satisfazer as necessidades humanas com menos. A sociedade de consumo não vai fazer isso e nem as corporações, só os setores populares vão fazer, construindo essas formas de relacionamento com a natureza”.

Debate popular e a partir dos territórios

A secretária geral do Jubileu Sul/Américas, Martha Flores partiu de uma análise de dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para problematizar a realidade vivida pelos povos da região quanto ao acesso à eletricidade, os altos custos tarifários, o direito à autodeterminação, os impactos sobre os corpos e territórios afetados por megaprojetos de hidrelétricas.

Na visão da socióloga, é fundamental debater o fato de que “a disputa sobre a teorização dos modelos energéticos teria que ser totalmente popularizada”, conectada aos processos de definição dos orçamentos públicos e à visão sobre as disputas que ocorrem desde os territórios.

“A questão da soberania energética também está ligada ao direito sagrado à alimentação e à soberania alimentar, as grandes corporações que industrializam alimentos. É importante pensar tudo no sentido do direito dos povos à paz com justiça, em para onde vão esses projetos hidrelétricos que têm consequências na vida, na disputa, na criminalização, na violência e na discriminação em relação a grupos e às populações que fazem qualquer mínima oposição”, afirma.

Intervenção do público participante no SITRANDE

Jorge Lara Castro, ex-ministro de Relações Exteriores do Paraguai, fez uma síntese das transformações na geopolítica da região, do modelo imposto pelas ditaduras militares, a partir da doutrina de segurança nacional, à mudança para se pensar num modelo de cooperação, de integração, onde a cidadania se complete com a integração regional. Falou das discrepâncias no Cone Sul, e sobre como fazer com que a energia para o social também possa transformar a realidade e atender a necessidade dos povos.

Na opinião de Castro, a questão da energia é “um imperativo estratégico nacional, regional e internacional. Exige revermos nossas estruturas de pensamento porque há contradições produzidas pela realidade e o uso e abuso da energia, porque também estamos submetidos a um pensamento neocolonial e é o neocolonialismo que acaba sendo funcional à continuidade desse processo”.

Avá-Guarani na luta por reparações

O impacto das barragens e investimentos futuros, a voz dos povos indígenas, comunidades campesinas e de afrodescendentes afetados, e o caso das comunidades Avá-Guarani desalojadas pela construção de Itaipu foram os temas do primeiro painel do seminário, com moderação de Oscar Rivas, da Sobrevivencia – Amigos de la Tierra (Paraguai).

Representando a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), o líder Avá-Guarani Celso Japoty Alves relatou a luta de seu povo, que há 40 anos reivindica reparação dos danos causados com o desalojamento de mais de 30 comunidades para a construção da hidrelétrica binacional de Itaipu.

Além da mobilização permanente dos indígenas, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Civil Originária (ACO) 3555 para reivindicar reparações e condenação do Estado brasileiro, apesar da desconstrução sofrida em comparação à ação original movida na Procuradoria Geral da República (PGR), a ACO 3300 (leia mais). O relator do caso é o ministro Alexandre de Moraes.

“O mais importante nessa ação era que um ministro do STF ouvisse nossa voz, nossa posição, considerando que fomos impactados diretamente pela usina de Itaipu e somos os maiores interessados no que vai ser debatido, decidido. O mais importante dessa ação é a defesa do nosso território, com garantias à nossa comunidade para que passemos a viver bem, com segurança, para finalmente rever nossa terra, reconhecida a demarcada. Também pedimos que o ministro ouça as palavras de nossas lideranças que vivem esse processo histórico desde o início e mantêm viva a memória dessa violência”, ressaltou Japoty Alves em sua intervenção.

A partir da esquerda, os painelistas Celso Japoty, Clovis Brighenti e o moderador Oscar Rivas26

Clovis Brighenti, do Conselho Indigenista Missionário – Cimi (Brasil), falou sobre a dívida histórica da hidrelétrica com os Ava-Guarani, sobre a luta indígena por reparações na esfera jurídica e também sobre as ações de mobilização.

Com diversos mapas e dados, ele apresentou os antecedentes e estudos que mostram que o total de comunidades afetadas e desalojadas pela construção da usina é muito maior do que Itaipu afirma — seriam sete comunidades com 234 famílias na margem direita segundo a afirmação da direção da usina (que também não reconheceu nenhuma comunidade à esquerda da hidrelétrica), mas os estudos apontam que eram 36 comunidades e 543 famílias Além disso, os reassentamentos concentraram as centenas de famílias em áreas de terra insuficientes.

Para Verena Glass, da Fundação Rosa Luxemburgo (Brasil), é importante que as discussões sobre soberania energética no Cone Sul também levem em conta como e onde a energia é gerada “porque além do perigo do neocolonialismo, temos que olhar o perigo do colonialismo interno, quando os governos entendem que podem gerar ou construir ou pensar em grandes projetos, grandes obras de energia que afetam profundamente as pessoas que talvez considerem como pessoas de segunda classe”.

Ela destacou a relevância de se recorrer à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil e Paraguai, como instrumento de luta contra os megaprojetos, uma vez que o tratado internacional obriga os países a realizar consultas prévias aos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais.

“Nesse sentido, temos um instrumento para falir esse colonialismo interno, quando um governo diz: ‘Bem, há pessoas que não me interessam, vamos fazer em nome da nação, isso é direito do cidadão’. [A Convenção 169] tem poder da lei, confirmada por países internacionais, e tem que respeitar. Acho que a discussão está avançando bem na Convenção 169, mas outra coisa é a forma como as populações indígenas ou tradicionais têm que se organizar para garantir que seus direitos sejam cumpridos”, completa.

II Seminário Internacional deu continuidade ao processo de discussão iniciados no primeiro seminário, em novembro de 2021, sobre integração e soberania energética e elétrica, o papel do Estado, os direitos humanos e socioambientais, especialmente do povo Avá–Guarani paranaense. Entre outras organizações, a atividade é uma iniciativa integrada pelas redes Jubileu Sul Brasil e Jubileu Sul/Américas, por meio da articulação do Cone Sul.

Declaração de interesse nacional do seminário pelos senadores do Congresso Nacional paraguaio:

Declaración N° 426

¹ Green new deal é um conjunto de propostas econômicas defendidas pelos Estados Unidos para combate das mudanças climáticas, num termo que faz alusão ao “new deal” – novo acordo –, medidas econômicas implementadas pelo presidente Franklin Roosevelt, que governou o país de 1933 até 1945, visando solucionar os problemas econômicos da época. 

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